segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Férias

Para começar as férias em grande estilo a Cia. Simbiose esteve no workshop do Tadashi Endo, na sede do LUME em Campinas. O workshop aconteceu entre os dias 14 e 18, cinco dias em que tivemos a honra de aprender e muito sobre Butoh com o Tadashi. Eu poderia ficar horas falando do quanto foi bom o workshop, mas em vez disso faço uso de uma entrevista que se encontra na revista Lume, nº6 de 2005, feita por Jesser Souza e a Folha de São Paulo com o Tadashi. A entrevista foi feita logo após a montagem do espetáculo “Shi-Zen, 7 Cuias” com o Lume, em 2005. É longa, mas vale a pena!

Revita do Lume, nº6 II 2005


“Shi-Zen, 7 Cuias”: Uma entrevista com Tadashi Endo

Valmir Santos // Folha de São Paulo e Jesser Souza // LUME

VALMIR SANTOS – Como foi casar o Butoh com o corpo brasileiro, com as “ancas da tradição”, como diz um músico e compositor brasileiro, Tom Zé? Somos um país de extroversão corporal, mais visível que invisivél, por exemplo... O senhor concorda?

TADASHI ENDO – Antes de mais nada, devo dizer que eu próprio me perguntei, quando vim pela primeira vez ao Brasil, o que representava o Brasil para mim. Num primeiro momento as respostas que surgiram eram relacionadas a aspectos triviais: Brsil clima agradável, boa comida e pessoas muito gentis. Em seguida, me vinha o temperamento brasileiro, muito diferente para mim. Numa primeira abordagem o que me chamava a atenção e o que meus olhos viam era o excesso na corporidade, o tempo todo ação, o tempo todo algum movimento para algum lugar ou em função de algo; o tempo todo. Nunca havia silêncio, quietude ou imobilidade. Então, o tempo todo havia alguma “música”. E isso é agradável de se ver e eu aprecio, me dá prazer, eu gosto. Mas quando eu ministrei um workshop pela primeira vez no Brasil , em 2002, percebi, no decorrer do trabalho, o quanto as pessoas se concentravam e, então surgiam, e eu pude perceber, nuances absolutamente diferentes da imagem primeira que eu tinha dos brasileiros. Eu pensava que os brasileiros queriam dançar o tempo todo, apenas movimentos e mais movimentos e excitação e entusiasmo, euforia. Não, eles são muito mais que isso: são também muito sérios, muito tranquilos, e muito concentrados. Então eu pensei: sim, talvez algum entimento e melancolia ou tristeza haja por trás do temperamento repleto de movimentos energéticos que os brasileiros têm. Por trás desses movimentos talvez eles tenham alguma tristeza, alguma melancolia. Então isso foi o que descobri: os brasileiros não demonstram o tempo todo esta tristeza, essa melancolia, porque seus movimentos são mais alegres que tristes, mas eles as mantêm por dentro (tristeza e melancolia). Então, quando eu trabalho com brasileiros eu tenho que pinçar esse sentimento que há “por de trás do movimento”, a quietude e também a tristeza e a melancolia. E, através do primeiro workshop eu pude ver, sim eles conseguem (podem, são capazes) . Este era o primeiro aspecto que me levava a querer trabalhar com os brasileiros. E, então, eu tive muita sorte de encontrar exatamente o Grupo LUME, sete atores, sete pessoas diferentes, brasileiros (exceto Naomi que é inglesa), mas sete “brasileiros” tão diferentes. Então pensei: ao trabalhar com eles eu devo criar simbolismos pessoais particulares para cada atores e atrizes no espetáculo. Este foi o segundo aspecto que considerei.
Eu penso que a corporeidade brasileira, ou a corporeidade japonesa, ou norte-americana, ou alemã, hoje têm muita semelhança. A corporiedade de muitos jovens japoneses hoje, é muito similar à dos jovens europeus. Na minha juventude era talvez um pouco diferente, pois esta geração de jovens japoneses não tem estatura baixa: são altos; e também o oposto ocorre na Alemanha, ou Estados Unidos ou Brasil; eu vejo muita mescla. Por exemplo, Jesser (um dos atores do Lume) não tem estatura alta, não é grande, seu físico se assemelha ao biótipo japonês. Penso que o corpo em si não é muito diferente, talvez em função da cultura norte-americana. Muitos japonêses bebêm coca-cola e comem Mc Donalds. O que difere os japoneses dos brasileiros talvez seja o estilo de vida. Esta é a diferença. O corpo em si, não. E isso eu percebo através do trabalho: como se “entra em trabalho”, como os atores do Lume entram em situações de trabalho. Por exemplo, às vezes acontece de bailarinos e/ou atores japoneses aguardarem por mim para iniciar o trabalho, sentados; não fazendo meditações, mas apenas sentados e aguardando. Isso não acontece no Brasil; mas a concentração para começar é a mesma. E é apenas este modo, esta maneira de começar o trabalho; talvez isso seja um pouco diferente.

VALMIR – A sua parceria com o Lume (a dança e o teatro de outra cultura) é a própria na natureza do Butoh, dessa arte que está “entre”, o MA, e não enxerga fronteiras?

TADASHI – Sobre este tema fundamental em meu trabalho – o “Butoh-Ma”, “estar entre” – é, evidentemente, muito importante, para mim, e está diretamente conectado com minha vida, porque minha vida é “estar entre”. Eu nasci em Pequim, China, com cidadania japonesa; fui para a Europa, como japonês; vivo na Alemanha, mas o que eu faço (a minha criação artistica) não é fruto da cultura alemã, ou européia, e sim fruto da experiência, do conhecimento e da vivência da cultura japonesa. Mas meu estilo de vida na Alemanha não é completamente japonês; é talvez um estilo mas alemão. Quando eu me apresento no Japão no cartaz anunciam: “Tadashi Endo, da Alemanha”, e quando eu me apresento aqui no Brasil ou na Europa, anunciam: “Tadashi Endo, do Japão”. Em outras palavras, eu sou, por assim dizer, um pouco homeless (sem lar): estou o tempo todo “entre” (in between), e quando eu me perceo existindo “entre”, então eu tenho muito mais forças opostas co-existindo em mim, muito mais tensões, e disso eu preciso para o meu trabalho. Eu não posso estar absolutamente confortável, e também devo estar aberto e cauteloso. Eu preciso desta tensão, e é também esta tensão que eu proponho e espero do atores do Lume. Eu lhes digo sempre: “esteja ‘desconfortável’, mas nunca desista! Se você se sente tão confortável, então não tem necessidade de dançar, porque tem tudo de que precisa, e isos é confortável. Se você se sente ‘desonfortável’, lute contra este desconforto.” Todos nós temos problemas, problemas físicos e pscicológicos, mas nenhum de nós deseja carregar estes problemas por toda a vida. Todos desejamos escapar dessa situação de dor, e esta atividade, esta atitude é, para mim, a dança Butoh. É esta atitude que eu tenho trabalhado com o elenco do Lume, ora impulsionando o trabalho no sentido de atividade física intensa, ora, ao contrário, trabalhando com a suavidade e a quietude. Esta é uma maneira de pensar “entre”: não se deve estar o tempo todo absolutamente seguro; deve-se questionar-se sempre; o corpo é um grande ponto de interrogação... mas nunca desista.

JESSES DE SOUZA – Este “entre” é uma espécie de luta, e esta luta é o que o faz agir?

TADASHI – Sim. Você deseja fazer algo, mas ao mesmo tempo não deve fazê-lo, mas deveria. Então quando você faz este algo, você o faz com resistência. Esta é a tensão de que falo. Você quer ir adiante, mas vai para trás... Um pouco esta sensação...

VALMIR – E quanto a música? O que achou da experiência de fundir ritmos brasileiro, como o forró de Luiz Gonzagae o maracatu, ao canto lírico? (É de Maria Callas?)

TADASHI – Esta é uma questão muito peculiar. São bastante especiais a música, o Lume, o povo brasileiro. No espetáculo há muitas brasileiras, porque fazem parte do trabalho e das pesquisas do Lume. Os atores cantam e tocam instrumentos, têm uma identidade muito musical. Antes de vir ao Brasil, eu não tinha em mente a inserção de músicas brasileiras no projeto para o espetáculo “SHI-ZEN, 7 Cuias”. Então pedi aos atores que cantassem algumas canções brasileiras, e eles cantaram muitíssimas. Uma delas, embora não tivesse entendido absolutamente nada da letra, me encantava melodicamente. Esta canção me remetia a algo, não exatamente japonês, mas algo relacionado à minha infância. Então, resolvi colocá-la no espetáculo, e ao tomar conhecimento da letra fiquei muito surpreso, pois era exatamente o que eu buscava: a imagem de um pássaro cego. Num outro momento do espetáculo eu queria usar um rítimo forte que tivesse uma pulsaçã, com batidas de tambor. Mas a “Techno Beat” moderna, nos Estado Unidos ou na Europa, é imediatamente identificado como Hip-Hop, ou Techno ou Discoteque, e não me interessa em meu trabalho esse tipo de clichê. Os atores me mostraram então o Maracatu que evidentemente tem uma pulsação com um quê de ritmo “Techno”, mas com um outro sabor, com um tempero brasileiro em sua sonoridade, e isso me encantou, ao mesmo tempo que me aprecia muito natural usar essa música pois parecia natural para os atores do Lume e sua corporidade brasileira. Os atores acolhiam este ritmo em seus corpos com muita naturalidade. É uma cena de corrida, mas, para mim, não deixa de ser dança. Correr também é como que dançar.
Não sei exatamente que música você se refere. Há uma, no meio do espetáculo, na cena que chamamos de “Pesca”, que é cantada por Luzmila Carpio, uma cantora boliviana. Esta canção é, para mim, com que relacionada ao caráter feminino russo. Me remete a paisagem Russa, à vastidão dos campos, às grandes distâncias, a imagem que me vem é de uma mulher absolutamente sozinha cantando.

VALMIR – A musicalidade inerente ao gesto e ao movimento do corpo, como uma sinfonia orgânica, constitui um terreno fértil para a floração do Butoh?

TADASHI – No espetáculo, algumas músicas, por exemplo esta de Luzmila Carpio, tem um “swing”, que evoca distância, uma atmosfera de suavidade, como o vento indo e vindo, pra lá e pra cá... E as ações de Ana Cristina e Raquel, que fazem esta cena, estão muito diretamente conectadas com este clima. Mas estas ações não são ações claramente precisas, pois a canção tem esta altura de devaneio, de incostância, como que flutuante e incerta. Então as ações devem, neste caso, ser suaves e inconsientes. Já em outra cena, a que intitulamos “Tango”, a precisão, a definição e um quê de erotismo nas ações são a tônica. Nesta cena os corpos e as ações aoresentam um caráter definitivo, cortante, assim como o tango, mas ao mesmo tempo, também erótico; quero dizer, com isso, que há também um certo prazer nas ações. Não se trata de ações militarmente precisas. Há também uma canção japonesa, “Akatombo”, em que a canção apenas confere uma determinada atmosfera à cena. Neste caso, não há dança ou movimento diretamente conectados com a música: são completamente independentes. Mas as ações de Naomi e Renato, nesta cena dão uma atmosfera de “Akatombo”. A música funciona como uma base, um tapete para a instalação de uma atmosfera.
Para mim, pode-se dançar de acordo coma música, ou contra a música, ou ainda, tendo-a como pareceira e, neste caso, ela funciona como geradora de atmosfera. Com este jogo pode-se criar em um espetáculo inúmeras cenas distintas.

JESSER – A dança Butoh eusa estas três possibilidades?

TADASHI – Eu não posso generalizar, pois alguns dançarinos de Butoh usam apenas sons acústicos, ruídos, som de vento, de chuva, sem nenhuma melodia ritmica clara e precisa. Mas para mim tudo é Butoh, se você constrói seu trabalho dentro dos princípios da filosofia Butoh.

JESSER: Em poucas palavras, como você definiria a filosofia Butoh?

TADASHI: Para mim, qualquer dançarino de Butoh, ou pessoas que desejam dançar Butoh, todos são aceitáveis e possíveis, desde que não percam a noção de que são peixes diferentes nadando no mesmo rio do Butoh. Temos que lutar o tempo todo, nunca estar plenamente confortáveis e nunca mostrar exatamente aquilo de que somos capazes, mas sim, deixar-se existir.

VALMIR – Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata trouxeram à luz a chamada ‘dança das trevas’ no pós-Segunda Guerra Mundial, nos anos 40. Como é praticar, hoje, uma dança plena em subjetividade, em simbolismos, numa época também de assombro, de dor, por conta do terrorismo em escala global e do medo do outro no plano das relações sociais?

TADASHI – Esta é uma pergunta bastante política.
A dança Butoh deve ser sempre anárquica, marginal. Quando a dança Butoh se torna “política” (no sentido de busca de identificação com as camadas populares ou de busca de temas na vida do povo), quando se torna “show”, eu creio que perdemos algo. A dança Butoh era, no princípio, realmente underground e radical; e isso eu quero manter. Evidentemente podemos nos apresentar em grandes teatros, mas esta condição é preciso ser mantida: estar sempre na margem externa, ser marginal também é radical. A dança Butoh não é “show”, no sentido de exibição; não é como esporte, em que você trabalha em busca do perfeccionismo. Não, a dança Butoh é incerta, não tem uma “forma” definida, não existe uma “técnica Butoh”; cada um deve encontrar por si sua própria dança e sua maneira particular de criar.
Quando você me pergunta sobre o terrorismo e a situação política, eu volto novamente a falar sobra Butoh MA, “estar entre” (in between). Eu penso que, no futuro, todos seremos uma mistura, uma mescla entra europeus, japoneses, asiáticos, americanos, africanos, e o mesmo se dará no plano das religiões. Tlavez, então, em todo o mundo haverá paz.
Comemos diariamente comidas diferentes: spaghetti italiano, comida brasileira, caipirinha, sushi japonês. Muitos de nós comemos um pouco de cada uma dessas comidas diferentes, usufruímos desta mistura. Não comemos sempre o mesmo tipo de comida. Porque, então, desejar mantes unicamente sua própria religião, unicamente seu próprio Deus, unicamente sua própria cultura? Não, todos devemos nos unicr, nos misturar. Esta eu acredito ser uma atitude mais pacífica, e na dança Butoh há espaço para tudo; não há necessidade do formalismo e do tecnicismo do Ballet Clássico. O Butoh é por vezes dança, por vezes teatro, por vezes performance e por vezes tudo isso junto. Portanto, o Butoh não tem uma técnica fixa, mas tem muitíssimas possibilidades. Eu acredito que, no futuro, se a dança Butoh se difundir cada vez mais, a tradicional “dança das trevas” será mantida, especialmente pelos dançarinos japoneses, e o Butoh se tornará mais interessante e importante.

VALMIR – Qual o futuro do butoh na “sociedade do espetáculo”, como definida por Guy Debord?
TADASHI – Eu sinto muito, mas não sei quem é Guy Debord.
Com relação a esta pergunta, a resposta é justamente o que acabo de dizer anteriormente.
Eu poderia ainda dizer o seguinte: eu criei um esperáculo com minha companhia (Mamu Dance Theater) intitulado “Migration”. Todas as três dançarinas de minha companhia vivem em Londres, mas são uma de Israel, outra da Austrália e outra do Japão. Nenhuma delas é inglesa, mas vivem todas em Londres. São, portanto, imigrantes, assim como eu, japonês vivendo na Alemanha. Então eu resolvi trabalhar sobre este tema: “migração”. No futuro teremos que saber de onde viemos, qual é a nossa referência cultural, mas deveremos aceitar e respeitar as outras culturas. Para isso, a melhor maneira é viver alguns anos em um país estrangeiro e buscar entender a cultura e o estilo de vida desse país. Assim, eu acredito que se compreenderá muito melhor sua própria cultura. Para o futuro eu acredito em um “globalismo”, até mesmo nas companhias de dança e teatro, o que já vem acontecendo em várias partes do mundo. Há muitas companhias mistas, com dançarinos negros, brancos, asiáticos.

VALMIR – Para encerrar, o senhor importaria de informar sua idade?

TADASHI – Minha idade? Evidentemente, eu preferiria que primeiro você assistisse a minha apresentção e depois perguntasse quantos anos tenho (risos), porque minha idade no palco é diferente de minha idade na vida privade... Mas eu nasci em 1947 portanto dois anos após o fim da I Guerra Mundial


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Ok repondi a todas as questões. Mas... Não sei... Eu poderia dizer outras coisas mais... Geralmente, quando me perguntam sobre Butoh... De fato eu não venho do Butoh, eu vim do teatro. Em seguida, enveredei pala dança e mais tarde conheci Kazuo Ohno, e desde então eu danço Butoh. O Butoh esteve o tempo todo ao meu lado, eu apenas não enchergava. Então, quando encontrei Kazuo Ohno eu tomei conhecimento do Butoh, que esteve o tempo todo sentado ao meu lado, esperando ser visto por mim. Este é o sentimento que tenho em mim, em relação ao Butoh; ele estava em mim, mas eu não o via. Para mim, em verdade, não sera um problema se mais tarde eu disser que meu trabalho não se chama Butoh; talvez um outro nome. Agora eu chamo de Butoh-Ma, mas mais tarde um outro nome pode ser encontrado para definir melhor o que eu faço. Por que não? Porque o Butoh para mim, são Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno. Eles criaram o Butoh e o dançaram de maneira especial. Mas Hijikata já morreu e Kazuo Ohno não pode mais dançar. Qual o meu futuro? Eu posso, hoje, trabalhar muito mais, eu tenho mais possibiliadades. Sempre que eu penso sobre “Ankoku-Butoh” (a dança das trevas), a dança de Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno eu sinto que algo me falta. Eu devo criar, devo desenvolver a partir do que eles não puderam realizar, e talvez eu possa. Nesse caso não me interessa se é ou não Butoh.

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Espero que tenham gostado!